escritas e falares da nossa língua


terça-feira, setembro 23, 2008

vadio (Pt., Gz. e Br.)

"vadio" (adj.; subst.) significa "vagabundo", "gandulo"; "errático" (exº: "Conversas Vadias", um antigo programa de TV de Agostinho da Silva); "fugidio"; "desocupado", "malandro", "ocioso", "preguiçoso"; "marginal".


cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
e reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
não sou parvo nem romancista russo aplicado,
e romantismo, sim, mas devagar...).

sinto uma simpatia por essa gente toda,
sobretudo quando não merece simpatia.
sim, eu sou também vadio e pedinte,
e sou-o também por minha culpa.
ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
é estar ao lado da escala social,
é não ser adaptável às normas da vida,
às normas reais ou sentimentais da vida.
não ser juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
não ser pobre a valer, operário explorado,
não ser doente de uma doença incurável,
não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria,
não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
e se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
não: tudo menos ter razão!
tudo menos importar-se com a humanidade!
tudo menos ceder ao humanitarismo!
de que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
é ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
é ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
tudo o mais é ter fome ou não ter que vestir.
e, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
e estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
coitado do Álvaro de Campos!
tão isolado na vida! tão deprimido nas sensações!
coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão
coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
e, sim, coitado dele!
mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
que são pedintes e pedem,
porque a alma humana é um abismo.
eu é que sei. coitado dele!
que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
mas até nem parvo sou!
nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
já disse: sou lúcido.
nada de estéticas com coração: sou lúcido.
merda! sou lúcido.

(Poesia de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa)

2 Comments:

  • :)
    Eu nao queria estragar o poema do Pessoa, mas também nao podia deixar de dizer que depois também estamos as vadias. ;)

    By Blogger La queue bleue, at 8:36 da tarde  

  • Sobre vadias medievais:

    "Maria Balteira, porque jogades,
    os dados, pois a eles descredes?
    Umas novas vos direi que sabiades:
    com quantos vos conhecem vos perdedes,
    cá vos direi que lhes ouço dizer
    que vós não devedes a descreer,
    pois dona sodes e jogar queredes!"

    (Pero Garcia Burgalês)

    By Blogger josé cunha-oliveira, at 9:13 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home