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sábado, setembro 20, 2008

e agora a Queimada

apesar do seu aspeto arcaico, a Queimada é uma tradição recente. e mesmo os seus ingredientes, tais como a augardente e o açúcar, não podem ser anteriores aos primórdios da Baixa Idade Média, pela simples razão de que ainda não existiam por cá.
mas, nos seus elementos fundamentais, tem reminiscências célticas, co seu lume, o pote, a escuridão, o álcool e os conjuros e esconjuros, cousa que, vindo do fundo dos tempos, remexe no íntimo da i-alma e da cultura do Noroeste, fazendo o êxito da Queimada.
espécie de teatro folclórico, a Queimada tem lugar à noite, depois da ceia, em plena escuridão, onde ressaltam a colher de augardente botando chispas de lume e as lengalengas de conjuros e esconjuros que, pola sua toada irracional, resultam numa linguagem que atinge diretamente o coração dos presentes.
a última vez que me recordo de participar numa Queimada foi em Vilar de Perdizes, Montalegre, no rematar dos trabalhos de um Congresso de Medicina Popular.
não tendo sequer cinquenta anos, os conjuros da Queimada são muitos, destacando-se os seguintes (em grafia reintegrada):


CONJURO DA QUEIMADA (Mariano Marcos de Abalo, 1967)

mouchos, corujas, sapos e bruxas, demos, trasgos e dianhos,
espíritos das nevoadas veigas,
corvos,
píntigas e meigas, feitiço das mencinheiras.
podres canhotas furadas, fogar dos vermes e
alimanhas,
lume das santas companhas,
mal de olho, negros meigalhos, cheiro dos mortos, tronos e raios.
ouveio do cam, pregom da morte, focinho do sátiro e pé de coelho,
pecadora língua da má mulher casada cum home velho.
averno de satám e belzebu, lume dos cadáveres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernais cus.
mugido da mar embravecida, barriga inútil da mulher solteira,
falar das gatas que andam à janeira,
guedelha porca da mulher mal parida.
com este fole levantarei as chamas deste lume que assemelha ó do inferno,
e fugirám as bruxas a cavalo nas suas vassouras,
indo-se banhar na praia das areias gordas.
ouvi, ouvi! os rugidos que dam
as que nom podem deixar de se queimar no aguardente,
ficando, assim, purificadas.
e quando esta beberagem baixe polas nossas gorjas
ficaremos livres dos males da nossa i-alma e de todo embruxamento.
forças do ar, terra, mar e lume, a vós fago esta chamada!
se é verdade que tendes mais poder que a humana gente,
aqui e agora fazei que os espíritos dos amigos que estám fora
participem com nós desta queimada.


CONJURO (Xosé María Pérez Paralhé, 1909-1987)

lume, luminha que verde caminha, da fraga à lareira fai-se lumeira
lume da quentura pra nossa fartura
lume abençoada que roda a queimada
pingota de orvalho, auga do agoiro
cerqueira de lume sem trasno nem fumo
nem bruxa chuchona, nem meiga ventona
rolar moinheiro, chiscar faisqueiro
mojena lumiosa, vagalume roxa
viradeira de luz, faremos a cruz
polo ar da sorte, que escorrenta a morte
pola auga da vida que sara a ferida
pola erva moura que o que abusca atesoura
pola pedra do raio que mata o meigalho
lume, lume, lume
lume lumeada para
alouminhar
a queima queimada
da vida virada do borburelhar
polo Sam Silvestre, cam e
palitroque
polo San Andrés ou polo Santiago
num reviravés queimada che fago
e queimada é


por curiosidade, querendo tentar:

QUEIMADA PARA 6:

- uma noite escura, vendo-se a lua
- 6 amigos e amigas
- uma panela de barro
- uma colher de pau comprida
- 6 malguinhas de barro
- uma fogueira ou lume
- litro e meio de aguardente de 45º
- meio quilo de açúcar
- raspas de um limão; pedacinhos de maçã ou bagos de uva, a gosto
- um quarto de litro de café do bom