escritas e falares da nossa língua


terça-feira, abril 29, 2008

fazer ouvidos de mercador

"fazer ouvidos de mercador" significa "fazer orelhas moucas", "fazer de conta que não se ouviu", "não ligar ao que dizem".
o mercador era alguém que se dedicava a vender bens ou objetos, viajando de terra em terra ou de um país para outro. o seu êxito devia mais àquilo que dizia aos clientes do que àquilo que os clientes lhe diziam. não era bom irritar-se ou zangar-se ou, simplesmente, permitir que os ânimos aquecessem. era o que hoje diríamos uma "postura profissional", de uma impassibilidade simpática, quanto baste para agradar. porque agradar demais também não é boa cousa.
enfim, manhas de persuasão.
está tudo na mesma.
mudaram os sítios onde se fazem as cousas
mas os homes não mudaram nada.

segunda-feira, abril 28, 2008

celular ou telemóvel

há meia dúzia de dias atrás, um diretor de um jornal de referência nas bancas portuguesas perguntava: - com o Acordo Ortográfico iremos dizer "celular", ou "telemóvel"? e pronunciava "cèlular", ostensivamente. o seu interlocutor, talvez surpreendido pela estupidez da pergunta, fez ouvidos de mercador e prosseguiu calmamente o que estava dizendo. eu acho que devia ter respondido.
em primeiro lugar, um acordo ortográfico diz respeito a como se escreve e não a como se fala. e nesse aspeto, nem "celular", nem "telemóvel" vão ter grafia diferente.
em segundo lugar, a pergunta tinha a manha de sugerir que, uma vez que os brasileiros dizem "celular" ("cèlular") e os portugueses dizem "telemóvel" (tèlèmóvel"), talvez uns e outros não falem bem a mesma língua.
acontece que o primeiro nome que a coisa teve em Portugal foi, precisamente, "celular" - palavra que se refere ao modo de transmissão e funcionamento da coisa. só depois foi criada essa aberração linguística que é o "telemóvel". aberração porque é um neologismo híbrido do grego (tele - ao longe, à distância) e do latim (mobilis - movel) cujo senso é nulo: "móvel à distância".

a pretensão de que chamar coisa diferente ao aparelho significa diferença linguística só é possível na mentalidade lisboeta, que não tem mundo à volta.
ainda não vai há muito tempo, ao ir de Bordéus a Lyon por Clermont-Ferrand, encontrei três nomes para a cousa: num lado era "mobile", noutro "celulaire" e noutro, ainda, "portable". todos falavam um francês irrepreensível e todos sabiam a que coisa cada qual se estava a referir.

sexta-feira, abril 25, 2008

você

"você" (pron.) deriva da expressão cerimoniosa "Vossa Mercê". a marcha da evolução simplificou a distância de tratamento e a respetiva expressão, fazendo de toda a gente "sua mercê". e está certo. as formas evolutivas estão todas em uso, desde o mundo rural ao mundo urbano e suburbano.
a distância de tratamento é tanto mais próxima quanto mais aferética é a forma evolutiva usada:

vocemecê - etimologicamente, a grafia correta seria vossemecê
vosmecê (Br.)
vomecê
você
ocê (Br.) - ver Comentº de Alacazum


na Galiza coexiste com "vostede" e "vosté", mestiçagens entre o "vossa mercê" da nossa gente e o "vuestra merced" de Madrid e arredores (ver Comentº de Calidonia).

no Brasil, "você" é todo o mundo e todo o mundo é "você".
o que cê acha?

quarta-feira, abril 23, 2008

muxoxo (Br., Ang.)

"muxoxo" (subst.) deriva diretamente do Quimbundo (Ang.). é um ruído seco, um estalido, que se faz com a língua e os lábios. habitualmente, acompanha-se da interjeição ah! serve para exprimir desprazer, contrariedade, desprezo ou desdém. mas, como nessa coisa de afetos se junta o norte e o sul, "muxoxo" vira "carinho" de acordo com a intenção. como diz o refrão, "quem desdenha quer comprar".
muxoxo tamém se usa no sentido de "beijo repenicado", sobretudo na forma aferética "xoxo" (Pt.).
tamém significa "desabafo", porque a contrariedade e o desprazer às vezes precisam de sair.
quanto à grafia, vou por "muxoxo". etimologicamente.

segunda-feira, abril 21, 2008

dor (Pt., Gz. e Br.)

"dor" (subst. fem.) "sensação desagradável, aflitiva e pungente em qualquer parte do corpo", "sofrimento físico, psíquico ou moral", "mágoa", "luto", "pesar", "dó".

há vários tipos de dor:

dor d'alma - "pena", "dó", "compaixão"

dor de burro - "dor que os atletas da maratona podem sentir durante a prova e que frequentemente os leva a desistir"

dor de corno - ver "dor de cotovelo"
dor de cotovelo - "ciúme", "inveja", "despeito"

dores de barriga - "estado em que está o estudante nas vésperas de um exame"

dores de parto (ou apenas "dores")


sobre a dor pesar, a dor aguda da saudade, a dor de uma perda súbita, a dor revolta, não resisto a transcrever, pela sua eloquência , este anúncio fúnebre de um jornal de Angola:

"A morte doi e doi muito, querido cunhado. Aquele maldito camião, carregado de farinha de trigo, saiu da sua faixa para nos deixar a dor e o luto naquela manhã do passado dia 15.11.97.
Às 8,40 deixaste a Dadinha, tua noiva, na Unidade Operativa de Luanda, às 8,50 deixaste o Cadete na Polícia de Intervenção Rápida e mentiste que irias só até ao Kassequel. Afinal foste morrer na maldita estrada de Viana às 10H00. Foste muito ingrato, Zacarias. Por que é que não avisaste na sexta-feira que estavas a despedir-te de nós? Se morrer é assim, deixa estar cunhado.
Que a sua alma descanse em paz".

sábado, abril 19, 2008

cafuné

"cafuné" (subst.) significa "uma pequena coçada na cabeça de alguém, remexendo-lhe no cabelo, como quem o quer acalmar ou adormentar", "carinho", "carícia".
me faz um cafuné, que eu gosto.

descontinuar

este intolerável verbo vem tamém do inglês, by Lisbon. faz parte do fastidioso discurso dos congressos científicos e da maioria dos delegados de informação médica. pretende significar "interromper" (uma medicação, um programa terapêutico), "suspender" (um tratamento), "parar" (um processo em marcha).
macacos me mordam se era preciso ir buscar esta preciosidade ao inglês...
mas é ver como dizem "descontinuar" com aquele ar de quem bebeu diretamente na fonte da sabedoria...

de todo

"de todo" (loc. adverb.) é, hoje em dia, um ícone da pior lisboetice. usada por pseudo-intelectuais aborrecidos de serem portugueses, é a transcrição directa do "at all" inglês.
significa "de modo nenhum", "não", "absolutamente não".
soa mal. não vou à bola com ele. de todo.

na nossa Língua, aparece em expressões como "de todo em todo" ou em expressões do género "f... não é parvo de todo", "esta sopa não é má de todo", exprimindo alguma incompletude. outras vezes, pode significar "totalmente", "completamente", como na expressão "f... é doido de todo".

terça-feira, abril 15, 2008

ajudar

"ajudar" (verb.) significa "auxiliar", "socorrer", "acudir"; "assessorar", "adjuvar"; "ir ao encontro das necessidades ou problemas de alguém".

graf. alternat. (Gz.): "axudar"

ajudar é uma necessidade humana. ver o outro em dificuldade ou carência ou problema sério é uma tentação das grandes. ajudar faz um bem daqueles à nossa autoimagem, sobretudo àquela autoimagem que vamos alimentando da imagem que os outros tenhem de nós.

mas, às vezes, a ajuda toma caminhos imprevistos.
recordo muitas vezes o bugueiro Pedro, que me levava a passear nas dunas de Cumbuco. "com emoção, ou sem emoção?" absolutamente indiferente: era sempre emocionante! fizemos amizade bem cedo. quando podia, quando o búgui não tinha clientes, o Pedro aparecia: "doutô, quer vir em Fortaleza?" outras vezes: "doutô, quer dar um passeiinho de búgui - não paga nada - quer ir comigo visitar um amigo meu, na mata?" e eu ia, é claro. eu não resisto às tentações de verdade. e lá íamos nós, sempre a falar, sempre a ouvir as estórias da aldeia de Caucaia, onde o Pedro tinha sua casa, mulher, filhos, galinhas caipiras, cachorros e vizinhos. uma aldeia que merecia bem o seu nome nativo: "Caucaia": "clareira na mata". uma mata negra e muda depois do pôr do sol.
até que notei, dias depois, que o Pedro andava encabulado, tristonho, cara de sofrido. não era o mesmo Pedro. aí, eu perguntei: "- Pedro, o que é que se passa com você?"
"- sabe, doutô, eu todas as noites tenho que ir no aeroporto pegar o pessoal que chega no vôo das 4 da manhã. quando eu vou prá cama, eu tenho medo de não acordar na hora e tem noites que nem durmo".
senti uma ternura imensa pelo nativo Pedro. e disse: "Pedro, fique tranquilo, eu vou resolver seu problema!"
no dia que pude, dei um pulo em Fortaleza. numa loja de fotografia eu vi um despertador lindo, moderno, de pilhas, aquela tentação. pensei: vou oferecer ao Pedro. vai ficar contente. é caro, é bonito, ele não vai esquecer mais esse momento. e se bem o pensei melhor o fiz. apareci em Cumbuco com um embrulho bem bonito. o Pedro abriu. ficou radiante, feliz, não sabia muito bem onde esconder a sua gratidão. e eu achei barato os 20 euros para tão encantadora alegria.
no dia seguinte o Pedro andava radiante, solto, dormido, feliz.
mas os dias passaram e o Pedro fechou de novo. andava esquivo, fugia do contacto, cumprimentava e sumia. pensei que andasse cheio de trabalho e solicitação. mas esse estranho comportamento persistia. até que decidi tirar a limpo a situação. "Pedro, você anda meio fugido da gente, quer ver que o despertador não funciona mais?.." e respondeu, como se desse um pulo: "funciona, sim, doutô, funciona muito bem. eu agora durmo bem e acordo na hora..."
dei uma resposta de silêncio incrédulo. o Pedro entendeu na minha cara e explicou o que faltava explicar:
"- só tem um problema: quando eu acordo, todo o mundo acorda!"

sábado, abril 12, 2008

família

do latim famulus, "escravo", a família era o conjunto dos trabalhadores servis e escravos que viviam debaixo do mesmo teto.
a evolução semântica seguiu a evolução dos usos e costumes. "família" foi o núcleo mais pequeno da gens (gente, tribo, pessoas ligadas a um antepassado comum pela linha masculina). foi o conjunto das pessoas de uma casa. foi tamém uma linhagem, um património e um acervo de usos e costumes que se mantinham ligados por laços de sangue e tradição.
podia ser qualquer grupo que se unia por interesses, crenças, propósitos ou atividades comuns.
o traço distintivo da "família" era a afiliação e o desempenho de atividades gratuitas.
hoje, reduzida praticamente à monoparentalidade e à efemeridade, a família dos parentes de sangue está em declínio. as afiliações e atividades gratuitas estão sendo substituidas por novas gerações multidisciplinares de profissionais específicos.
assiste-se também a uma insidiosa emergência de "famílias de afeto", com todos os inconvenientes dos afetos: entusiasmo, efemeridade, rotura e abandono.

domingo, abril 06, 2008

viajante

encontrei na net um pedido de tradução de "viajante" para castelhano.
como não gosto de deixar ninguém na ignorância, aqui vai o meu contributo.
"viajante" (subst.) é "aquele que viaja" (real , metafórica ou simbolicamente), "aquele que se faz transportar de um lugar para o outro" (real ou imaginário), "aquele que faz da vida uma viagem", "peregrino".
como atividade profissional, é "aquele que viaja para promover e vender produtos" (exº: "caixeiro-viajante").

variante: "viajeiro" (Gz.). graf. altern.: "viaxeiro".

já agora, em castelhano: "viajero".